sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

José Baptista de Almeida Faria (1929-2014), médico e tribuno


José Baptista de Almeida Faria
Moço dos meus catorze-quinze anos, minha mãe, que para além de dona de casa acrescentava o que podia, costurando para fora, aos fracos ganhos que a profissão de jornaleiro de meu pai trazia às despesas do lar, ocupada em seus afazeres, mandou-me a um funeral. Eram tempos em que toda a Póvoa se conhecia e em que toda a casa se fazia representar nos funerais, fossem de pobre ou de rico, através da presença de um membro da família. Já no cemitério e antes do caixão descer à cova, eis que um homem magro, meão de tamanho, sem aparências de grandeza, a mão esquerda posta sobre a tampa já encerrada da urna, levantou a voz, um vozeirão para ser mais exato, traçando belas palavras sobre o defunto que ali terminava o seu percurso, a sua passagem por esta vida. Escutei, embevecido, a pequena mas vibrante oração de homenagem pois, dada a minha pouca idade e maior ignorância, nunca tinha visto ou escutado nada de parecido. Já não recordo quem era o defunto, mas pela eloquência das palavras proferidas, fixei para sempre não só o momento, mas também o nome do homem que tão bem discursara aquele elogio fúnebre: Dr. José Baptista de Almeida Faria. Só depois vim a saber que era irmão da minha querida professora D. Edelja, que, da primeira à quarta classe, me ensinou as primeiras e mais importantes letras que aprendi na vida.
Nos anos seguintes, ouvi falar muitas e muitas vezes no Dr. Faria. Às vezes Dr. Faria, outras Dr. José Faria, e outras, ainda, quando se tratava de pessoas que lhe eram mais íntimas, Dr. Zeca Faria. Nunca fomos próximos, nem coisa que com isso se pareça. Mas ao longo do tempo, aprendi a admirá-lo mais ainda e falámos algumas vezes sobre coisas da Póvoa. Pela sua simplicidade, pelos seus dons de oratória, que escutei muitas vezes e em diversas circunstâncias, pelo bem que dele sempre ouvi dizer como médico e pelo que, em conversas mais restritas, aprendi quanto à sua forma de estar na vida. Ao que sei, podia ter sido muito nesta terra, mas nunca aceitou seguir por caminhos que não eram os seus nem quis ser mais que um bom médico e um cidadão honrado.
Nascido na freguesia de Lanhoso a 5 de maior de 1929, José Baptista de Almeida Faria era filho de José Baptista Rodrigues de Faria e de sua esposa dona Valentina Almeida de Faria. Descendia pois de duas famílias com pergaminhos nesta terra. De um lado, a família Faria, onde pontificaram médicos e proprietários, e da qual destaco um tio-avô, o padre João Crisóstomo Rodrigues de Faria (1872-1955), que foi professor e capelão do hospital António Lopes, mas que se distinguiu, sobretudo, por ser um amigo e benfeitor dos pobres desta terra, a quem dava milho e vinho da sua propriedade e que chegava a levar-lhes lenha a casa, quando sabia que a miséria invadia certos lares. Do outro lado a família Almeida, da qual distingo o patriarca, João Almeida, que tendo partido para o Brasil sem saber ler nem escrever, ali frequentou escola, tendo chegado a publicar um livro sobre a importância da leitura e do ensino. Regressou bastante remediado à nossa terra, sendo um dos primeiros “brasileiros”, ainda em finais do século XIX, a instituir na Póvoa prémios para incentivar as crianças a aprender.
Oriundo, pois, de famílias de gente boa e distinta, o Dr. José Baptista de Almeida Faria, seguindo uma tradição familiar, formou-se em medicina em 1953, licenciatura que complementou, logo depois, com o curso de ciências pedagógicas da faculdade de letras de Coimbra. Sobre ele, dizia-nos em 1956 o semanário Maria da Fonte: “Depois de larga prática nos Hospitais de Lisboa e Porto, vai, finalmente, abrir ao público o seu bem apetrechado consultório no Largo do Amparo, desta vila o distinto clínico [Dr. José de Almeida Faria]. Dotado de um carácter franco, dedicado ao estudo, cedo revelou seus dotes de inteligência, fazendo e concluindo com brilho a sua formatura, na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, onde, igualmente, em tempos já distantes, se distinguiram seu avô paterno, Dr. José Maria Rodrigues de Faria e seu bisavô, também paterno, Dr. José Baptista Gonçalves Dias, ainda hoje recordados com saudade – aquele no nosso concelho, e este na cidade do Porto”[1].
A partir dessa data o Dr. José de Almeida Faria desenvolveu a sua medicina na nossa terra, onde se tornou um profissional admirado e um homem respeitado, a par de outros nomes como os do Dr. Albino José da Silva, Dr. António Oliveira e Dr. Alcindo Antunes, que juntamente com ele, foram, durante décadas, os médicos da Póvoa.
Casou com D. Leonor Puentes Saavedra, natural de Redondela, Espanha, com quem teve um filho a que deram o nome de José Ângelo.
Em 1972, aos 43 anos de idade, foi mobilizado para a então província portuguesa de Timor. Ali exerceu funções como médico militar, com o posto de tenente-coronel. Mas, imbuído dessa nobre filosofia de que um médico deve estar sempre onde os doentes dele necessitam, embora pudesse ter-se negado a fazê-lo, aceitou, durante cerca de um ano, exercer como delegado de saúde em Ermera, sítio de montanha para onde se disponibilizou a partir. A sua ida para Timor foi igualmente relatada no já citado órgão da imprensa local, em 7 de outubro de 1972: “Saiu daqui [da Póvoa] na penúltima quinta-feira e embarcou de avião, em Lisboa, com destino a Timor, por ser mobilizado para prestar uma comissão de serviço naquela província ultramarina [o Dr. José de Almeida Faria]. Ali vai passar 2 anos e tal, levando consigo a esposa, D. Leonor Puentes Saavedra e o filho José Ângelo, estudante liceal”[2]. Voltou à Póvoa em outubro de 1974, sendo recebido com girândolas de foguetes e com grande alegria pelo povo da sua terra.
De regresso ao torrão natal, desempenhou vários cargos ligados à atividade médica, tendo sido delegado de saúde e médico do hospital. Ali, para além de todos os outros doentes que tratou, assistiu a centenas de partos, tendo ajudado outros tantos povoenses a nascer.
No pós-25 de abril, integrou a comissão nomeada para administrar o hospital António Lopes, cuja gestão o Estado tirou despoticamente à Misericórdia, a quem pertencia. Mas o Dr. José Faria era sobretudo um médico, um homem de ciência, um humanista e, embora o discurso político lhe estivesse na alma e lhe corresse no sangue – sabe-o quem o ouvir discursar, anos a fio, no jantar que todos os anos o Partido Socialista organizava na noite de 24 para 25 de abril, em comoração desse “dia inicial, inteiro e limpo” como lhe chamou Sophia de Mello Breyner; sabe-o quem o escutou tantas vezes quanto mandatário de vários candidatos do PS; sabe-o quem o escutou discursar nas mais diversas circunstância, como aquele elogio fúnebre que refiro ao iniciar este breve texto – o poder não o seduzia. Descontente com os caminhos que a gestão do hospital e da Misericórdia tomava naquele tempo quente pós-revolucionário, pediu demissão mas, como lha não aceitassem, deixou de comparecer às reuniões. Não obstante, nunca faltou aos seus doentes, aos particulares e aos do serviço público, nem como médico e como amigo.
José Baptista de Almeida Faria morreu no dia 15 de fevereiro de 2014, tendo a sua morte, por inesperada, deixado toda a Póvoa mergulhada num manto de tristeza. Com ele desapareceu um símbolo: o de um homem que podia ter sido tudo nesta terra, presidente da câmara, provedor da misericórdia, presidente dos bombeiros, tudo, mas que nunca quis o poder, que nunca quis ser mais que um simples médico e um homem de bem.
Foi sepultado no cemitério da Póvoa no dia 17 de fevereiro (2014), contando o seu funeral com a presença de muitos e muitos povoenses. Faltou, contudo, uma voz profundamente conhecedora do seu percurso que, como ele fizera tantas vezes em relação a outros, traçasse, junto ao seu caixão, o elogio fúnebre que merecia. O que de modo algum diminui a sua história e o seu exemplo enquanto grande médico e homem de bem.

José Abílio Coelho 


[1] Cf. Jornal Maria da Fonte, de 22 de janeiro de 1956, p. 1.
[2] Cf. Jornal Maria da Fonte, de 7 de outubro de 1972, p. 2