Hugo Rocha faz, na página 120 e seguintes do seu “Gentio Branco”, a descrição de uma prédica do Padre Anselmo, inspirada seguramente no Padre Carlos Alberto Ribeiro. E se muito do que consta daquele romance é pura ficção, o mesmo não pode dizer-se desta prédica. Eu diria mesmo que ela está aquém da realidade. De facto, o Padre Carlos era uma pessoa muito severa, não se ensaiando para afastar violentamente do caminho quem não estivesse no devido alinhamento quando levava com ele o cálice ou servia a comunhão, ou para recusar publicamente esta a quem ele pensasse estar em pecado. E disse uma vez, do altar a baixo, que alguns paroquianos recebiam a hóstia consagrada como a sua Coimbra (égua) comia uma copa de palha…
Mesmo com as crianças, a sua severidade era por vezes excessiva ralhando ou, até, batendo, nem sempre com razão, ou, pelo menos, de forma desproporcionada à falta cometida, e, por isso, os rapazes sentiam verdadeiro pavor quando tinham de se lhe confessar. De facto, sentados em bancos corridos, aguardando a nossa vez, pedíamos a todos os santos que nos saísse na rifa o outro confessor, o abade de Geraz, porque os ralhos e as pesadas penitências do Padre Carlos nos aterrorizavam.
Em contrapartida, dava gosto ser confessado pelo abade de Geraz, o bom do Padre Alves Pinheiro, de voz roufenha, para quem nada era pecado. Contava-se que, um dia, estava a confessar um rapaz que, com cara de aflito, apertava muito a mão no peito.
Estranhando a situação, o Padre lá continuou a confissão, mas, às tantas, soltou-se um passarinho do peito do rapaz e este largou a correr, igreja abaixo, deixando espantado o pobre do Padre. É que, o malandro, tinha andado aos ninhos e levara com ele um passarinho para a igreja! Contava-se, também, que o Padre Alves Pinheiro se queixara um dia, numa prédica, em Geraz, da falta de meios com que se debatia, pelo que se via obrigado a andar só com a Grila de fora… A Grila era a jornaleira que trabalhava no passal e ele queria referir-se à carência de mão de obra…
Mas voltemos à personalidade do Padre Carlos Alberto Ribeiro. Ainda no tocante às crianças, as longuíssimas acções de graças que, de joelhos, se tinham de dar após a comunhão, no chão frio e agreste da igreja, quase que anulavam o mérito de se ter comungado… Com efeito, depois de se ter percorrido caminhos cheios de lama, à luz de bruxuleantes lampiões, para chegar à igreja, ouvir a missa e comungar, era quase desumano obrigar as crianças, em jejum, àquele sacrifico sobre-humano. Atenuava esse tremendo esforço o cheiro perfumado das açucenas e outras flores que sempre ornamentavam os altares da igreja.
Mas o caso mais gritante foi o da Birinha do Silva (Belmira Júlia) que, numa festa de Santiago e Santa Luzia, foi escolhida para rainha das virgens. O carro respectivo, ao passar em frente à sua casa, parou a fim de que ela cantasse (tinha uma voz belíssima). Ora, como no rés-do-chão da casa funcionava a loja do Silva, onde também se vendia vinho, o Padre Carlos entendeu que seria um sacrilégio que a menina cantasse ali. E, bruscamente, talvez violentamente, retirou-a do carro, impedindo-a de cantar. Alguns elementos do povo, indignados, entenderam que não era mais possível tolerar procedimentos destes e, aos gritos contra o padre, avançaram para ele. Como a igreja ficava ao lado, foi-lhe possível fugir para o templo e, com a ajuda de algumas pessoas, entre as quais o meu pai, trancou-se por dentro, esperando que a fúria popular passasse. E, depois dos insultos, que duraram até à noite, quando o povo debandou, levaram o padre para Ajude, onde ficou na sua Casa de Cima de Vila. Entretanto, o tempo correu, houve contactos de parte a parte com o arcebispo, e, um dia, o padre Carlos regressou a Monsul reconciliado com os seus paroquianos. E nunca mais, até à sua morte, abandonou a freguesia.
Referidos os defeitos há, agora, que sublinhar as virtudes deste homem controverso, cujas reacções não serão facilmente explicáveis. Em primeiro lugar, o Padre Carlos organizava as melhores festas religiosas de toda aquela região, trazendo excelentes pregadores e dirigindo um grupo coral muito reputado; era zelosíssimo nos seus deveres paroquiais; e, sobretudo, fazia um incomparável mês de Maria – o mês de Maio – que ficaria para sempre gravado na minha mente e no meu coração.
Nesse mês, dedicado a Nossa Senhora de Fátima, entoavam-se bonitos cânticos, enquanto o padre tocava órgão ou lia trechos alusivos às Aparições, aos fenómenos de 13 de Outubro de 1917 e à vida maravilhosa dos pastorinhos. A apologia de Fátima era feita por ele com enorme devoção, embora tivesse vivido todo o interminável período de treze anos (1917/1930) que a Igreja levou para aceitar o carácter sobrenatural dos acontecimentos da Cova da Iria.
Mas há mais uma grande qualidade a apontar-lhe: a sua preocupação com os pobres. Com efeito, sendo minha mãe responsável pela Conferência de S. Vicente de Paulo, nunca lhe faltou o seu apoio; e o mesmo aconteceu, quando, tendo esta ficado incapacitada, lhe sucedeu, nessa missão, minha irmã Laura, então com vinte anos de idade. E no período da guerra (Segunda Grande Guerra) moveu as suas influências pessoais junto do Poder (Padre José Dias, então Presidente da Câmara) para assegurar o indispensável aos pobres, em bens alimentares. Numa época em que não havia Segurança Social e os pobres estavam totalmente dependentes da Caridade alheia, esta foi uma acção que deverá ser enaltecida.
Guardo ainda do Padre Carlos a alegria que imprimia à festa da Páscoa, percorrendo toda a freguesia casa a casa, montado na sua égua, a famosa “Coimbra”, com a campainha a tilintar continuamente e o numeroso cortejo de acompanhantes, com as suas opas coloridas. Que saudades eu tenho desse tempo!
O Padre Carlos morreria, na residência paroquial, na sequência de uma pneumonia fulminante que contraiu numa deslocação a cavalo da Ponte do Porto para Monsul, numa noite de temporal, vindo de Braga. Terá sido, por vezes, um homem contraditório, mas foi, seguramente, um grande e sofrido servidor de Deus. Tive o gosto de encontrar recentemente a Izilda (filha da Se Maria Ferradeira), sua fiel empregada, que ainda hoje se ocupa, graciosamente, da limpeza e arranjo da igreja.
Uma palavra ainda sobre o outro pároco de Monsul do meu tempo: o Padre Acácio António da Silva. Natural de Oliveira, vinha amiúde a Monsul, ainda como seminarista, fazendo amizade com meu pai e comigo próprio. Fomos mesmo grandes amigos e acompanhei a primeira fase da sua vida sacerdotal, quer como padre de Monsul, quer como brilhante pregador. Depois, eu fui para longe e quase perdemos o contacto. Mas a amizade perdurou. E, quando, abalado da sua saúde, deixou de pastorear Monsul, recolhendo-se ao Asilo de S. José, imediatamente telefonei para lá, tendo tido a sorte de haver sido ele próprio a atender o telefone. Pouco tempo antes da sua morte repentina, pressentindo-a talvez, escreveu-me a perguntar a quem deixar o seu exemplar do “Gentio Branco”… O Padre Acácio viria a ser sepultado no cemitério de Monsul.
Jorge Eduardo da Costa Oliveira
In: Monsul de Outros Tempos, no prelo