Elvira, filha legítima de Manoel de Pontes Câmara e de sua esposa D. Guilhermina de Mattos Vieira, ele natural da Ilha da Madeira, ela do Rio de Janeiro, nasceu na Rua 23 de Julho[1], paróquia de Santo Ildefonso, da cidade do Porto, no 5 de Setembro de 1856, em cuja igreja matriz viria a ser baptizada a 4 de Outubro do mesmo ano. Era neta paterna dos madeirenses Francisco de Pontes e D. Maria Narciza da Câmara, e materna de D. Emília Carlota Domingues, brasileira do Rio de Janeiro, e de avô incógnito, tendo sido seus padrinhos António Serafim Leite Basto e sua mulher D. Maria da Vitória Magalhães Leite Basto[2], proprietários da casa onde a mãe da recém-nascida estava hospedada quando a menina nasceu, enquanto o marido se encontrava ausente, na cidade do Paris[3]. O nascimento de Elvira de Pontes Câmara em Portugal ocorreu acidentalmente, no decurso de uma viagem que o casal empreendera à Europa, onde seu pai, emigrante português no Império do Brasil e negociante de largo trato, tinha grandes interesses comerciais. Mas se a vida tem caminhos pré-definidos, se nada acontece por acaso, este nascimento acidental em Portugal viria a mostrar-se providencial, dada a profunda ligação que D. Elvira viria a ter ao nosso país.
Pouco tempo após o nascimento, a menina regressou com os pais ao Brasil onde, na cidade do Rio de Janeiro, cresceu e brincou entre um conjunto de irmãos — várias raparigas e apenas um rapaz, Manoel de seu nome, o mais novo da prole —, sendo educada nos melhores colégios. Ali se fez mulher, no convívio com a melhor sociedade «carioca» da época.
Até que, com pouco mais de 15 anos de idade, conheceu na residência de seu pai o português António Ferreira Lopes, natural da Póvoa de Lanhoso, com quem viria a casar-se em Janeiro de 1875[4]. Ela tinha 18 anos de idade, ele 29. Em 1888, muito rica e sem filhos, regressou com o marido a Portugal. Definitivamente. Instalou-se o casal num belíssimo palacete na parte mais nobre da cidade de Lisboa, a Avenida da Liberdade, onde habitava grande parte do ano, e, pelo menos durante três meses, entre finais de Agosto e finais de Outubro ou inícios de Novembro, vinham ambos instalar-se na Póvoa de Lanhoso, no Palacete das Casas Novas que mandaram edificar após o regresso à pátria de Camões.
Com graves problemas de saúde, especialmente nos últimos anos da sua vida, D. Elvira de Pontes Câmara Lopes havia de morrer jovem, aos 53 anos de idade, na noite fria de 11 de Fevereiro de 1910 — poucos meses antes da implantação da República em Portugal.
A serena morte desta distintíssima senhora, que lia e falava fluentemente francês e tocava piano, que estudara nos melhores colégios da capital do já independente Império do Brasil e viajara vezes sem conta por toda a Europa, ocorreu em Lisboa, depois de quase seis anos padecendo de uma doença degenerativa que a obrigava a deslocar-se numa cadeira de rodas.
A notícia do seu falecimento chegou à Póvoa de Lanhoso via telégrafo manhã cedo do dia seguinte à sua morte. A terra, que a venerava e que nos elogios fúnebres lhe chamou «mãe» e «santa», vestiu de luto, e nos meses seguintes as missas pela sua alma encheram com as elites locais e o povo mais humilde as igrejas de todo o concelho.
Mas, quem foi, na realidade, para os povoenses que a adoravam, que guardaram até hoje o seu nome na memória e deram o seu nome a uma rua da vila, Dona Elvira Câmara Lopes? Foi a protectora dos pobres, a consoladora dos aflitos, o amparo das mães solteiras, o coração aberto e a mão gentil que, na sua residência local, recebia para lhes atenuar a fome e o frio crianças e mulheres que viviam na mais profunda miséria. Assim a descrevem, sem excepção, os jornais que à época se publicavam na Póvoa de Lanhoso. Assim a vemos nós, ainda hoje, num conjunto de fotografias captadas por visitas da casa que cá habitou, quando os portões do terreiro do Palacete das Casa Novas se abriam de par e par e por ali adentro acediam à protecção daquela senhora franzina e de olhos vivos dezenas e dezenas de crianças e mulheres, esfarrapadas e descalças. A todos consolava, a todos estendia a mão fraterna, a todos distribuía alimento e agasalho. Por isso, tantos lhe chamaram «mãe», apesar da Providência lhe não ter dado filhos naturais; por isso, muitos outros a apelidaram de «santa», embora o coração magnânimo do marido a não obrigasse a esconder no avental o pão para os pobres por milagre transformado em rosas.
Rica por nascimento, solidária por formação e influência familiar, bondosa por natureza, D. Elvira de Pontes Câmara Lopes foi em vida um exemplo de bem-fazer, não para com os da sua igualha, mas para com todos aqueles a quem a Providência deserdara de bens materiais e de saúde, sempre nesse doar constante apoiada pelo marido, que a ela se referiu tantas vezes como «a minha amada esposa».
O resto desta história de amor, desta união que durou trinta e cinco anos — a vida do casal no Rio de janeiro, a viagem de núpcias a Portugal alguns anos depois, a morte por afogamento, num naufrágio, de Manoel de Pontes Câmara quando, já viúvo, de Lisboa se dirigia para a Inglaterra, o regresso definitivo a Portugal, a instalação em Lisboa e os Verões na Póvoa de Lanhoso, a fundação dos Bombeiros e a construção do Theatro Club, o desprezo pela política e pelos cargos, as viagens familiares pela Europa, a porta sempre aberta para receber amigos, ricos ou pobres, titulares ou plebeus, as obras grandiosas que fizeram na nossa terra, o papel charneira no maior desenvolvimento que a Póvoa conheceu ao longo de toda a sua história — será desenvolvida, noutros suportes, em data futura.
Por agora, ao cumprirem-se 100 anos sobre o seu desaparecimento do mundo dos vivos, importa destacar o papel de Dona Elvira de Pontes Câmara Lopes como mulher solidária, como protectora dos pobres e dos aflitos, como «mãe» carinhosa dos filhos alheios, como a dona de um coração bondoso por detrás da face do marido que empreendeu todas as obras. E importa dizer ainda que, apesar do Hospital António Lopes, cujas obras se iniciaram em 1912 e concluíram em 1917, ter sido edificado já depois da morte desta nobre Senhora a quem a Póvoa relembra com saudade, não deixou de contar também com o seu contributo, fosse pelas inúmeras vezes que em vida pediu ao marido construísse na nossa terra «um hospital para os pobres» (especialmente por, quando cá se encontrava, em férias, assistir, aflita, quase diariamente, ao sofrimento de doentes e acidentados que em carros de bois eram transportados para o hospital de Braga, numa deslocação dolorosa que demorava várias horas), fosse pela riqueza que António Lopes dela recebeu para juntar à sua, após a abertura do testamento que o tornava seu universal herdeiro, já que haviam casado após firmarem um acordo antenupcial através do qual cada um deles manteria, em vida, a posse dos próprios bens e tornaria o sobrevivo herdeiro universal daquele que primeiro partisse.
D. Elvira de Pontes Câmara Lopes faleceu em Lisboa pelas dez horas da noite do dia 11 de Fevereiro de 1910 — uma sexta-feira chuvosa e fria em que, na capital do país, se trabalhava já com vigor a implantação da República que chegaria menos de oito meses volvidos. Não obstante um século passado sobre o seu desaparecimento, tempo longo em que tantas e tão profundas mudanças se registaram no Planeta, umas vezes para melhor, outras para pior, a verdade é que «os longos dias que têm cem anos» não foram capazes de apagar o nome de Elvira de Pontes Câmara Lopes da história e, muito especialmente, do coração dos povoenses.
O que só um enorme bem-querer é capaz de conseguir.
José Abílio Coelho
[2] Arquivo Distrital do Porto – Livro de Assentos Baptismais da paróquia de Stº Ildefonso (ano de 1856, assento nº. 250). [3] Numa memória de Pontes Câmara, em nossa posse, este refere expressamente ser D. Elvira «a única filha a cujo nascimento não assisti». Embora o não o diga claramente, Pontes Câmara estaria envolvido com uma senhora francesa (e note-se que são constantes, ao longo da sua vida as viagens à Europa e especialmente a França), pois indica que, a 13 de Novembro desse ano de 1856, nasceu em Paris, pelas «seis horas e quatro minutos da tarde, outra filha minha». Esta criança virá a ser também baptizada na igreja de Santo Ildefonso, na cidade do Porto, aos 28 dias do mês de Julho de 1859, com o nome de Emma Edouina Rita Emmuella, sendo padrinhos José Cardozo Pinto Montenegro e Dona Rita Acássia Lopes. A menina faleceu a 18 de Fevereiro de 1867. [4] Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, livro de casamentos (nota AP 554), da freguesia de Santa Rita.